Porque, claro, como amante de direção e de memórias, eu precisava da experiência completa. E lá fui eu, sozinha, com o vento nos cabelos, a caminho de Marfa (Clichê Nº 1).
Dirigir de Austin a Marfa, vendo a paisagem se transformar em deserto, ao som de MacArthur Park, foi uma experiência quase memorável. Tudo parecia uma versão cinematográfica de mim mesma, e Marfa começava então a se materializar. Pesquisei hotéis e descobri o famoso Paisano, conhecido por ter hospedado Elizabeth Taylor e James Dean durante as filmagens de Giant, mas o que realmente ganhou meu coração foi o El Cosmico.
O El Cosmico é, digamos, um "cluster" de glamping. Diversas opções diferentes de acampamento em um só terreno. Ainda no Brasil, enquanto passeava pelas alternativas no site, a teepee parecia a mais charmosa e autêntica. Fiz a reserva sem pestanejar.
Quando cheguei ao El Cosmico, a primeira coisa que me deram foi um carrinho de mão para levar minhas coisas até a tenda. Daqueles bem acabados de obra, sabe? Os americanos, preciso admitir, sabem vender qualquer coisa, até a falta de conforto. Lá fui eu, empurrando meu carrinho, rindo sozinha. Aquilo era só um aperitivo do que estava por vir. Eu só não sabia ainda.
Minha teepee tinha não mais que uns 4 metros quadrados. Se a lareira ao centro criava um clima aconchegante, o mesmo não pode ser dito da enorme fresta entre o chão e a tenda, que deixava espaço suficiente para minha imaginação correr solta. Pensei, em silêncio, em todos os bichos rastejantes que poderiam passar para say hello. Tentei não pensar demais, mas o encarte ao lado da cama me traiu: "Certifique-se de manter sua mala fechada... nunca se sabe o que pode entrar enquanto você dorme”. Nem preciso dizer que minha mala ficou trancada durante os cinco dias, e meus tênis pendurados. E na noite em que esqueci a mala aberta? Passei horas insones na cama, imaginando a possível farra que os animais noturnos estariam a fazer pelas minhas roupas. Mas estou viva, então parece que tudo correu bem.
A maioria das pessoas que conheço não pagaria por isso, ainda mais em dólar. Eu mesma teria pensado duas vezes, não fosse pela minha obsessão estética. Explico: se eu tivesse sido minimamente racional e levado em conta os aspectos práticos, talvez não estivesse ali, sozinha, no meio de um deserto sem hospital, em um país onde nem remédios são fáceis de comprar. Mas sou dessas que diante de uma possibilidade de viver cenas romantizadas deixa toda e qualquer racionalidade de lado em prol da experiência. Ignoro todo o resto.
E o resto? Bom, aí vai: “Ei, mas pera aí, cadê o banheiro?" Ande 80 passos à esquerda da teepee. Sei que do conforto do seu lar pode parecer pouco, mas imagine esse trajeto no meio da madrugada, em um deserto gelado, sem luz, com toda a fauna local à espreita. Implementei uma tática de sobrevivência: nada de líquidos após as 18:00. O banheiro comunitário, de madeira ripada, sem telhado, sem espelho, era o destino final. Eu não me vi no espelho por cinco dias.
Mas vi Marfa de cabo a rabo, uma cidade que parece desenhada por Wes Anderson nos mínimos detalhes.
Marfa se tornou icônica nos anos 70, quando o artista Donald Judd decidiu se instalar lá. Donald Judd sempre teve uma visão muito clara de sua arte: ele queria que suas obras existissem de maneira permanente, algo que os museus e galerias, com suas exposições temporárias, raramente permitiam.
Ele queria fugir do caos de Nova York, encontrar espaço, silêncio e uma conexão direta com a natureza. A vastidão do deserto permitiu-lhe criar em grande escala, sem as pressões do mercado de arte.
Ele via Marfa como uma tela em branco, um lugar onde poderia construir um legado duradouro, imune às tendências voláteis do mercado de arte. Ao adquirir várias propriedades na cidade, ele conseguiu criar algo inédito: um "museu ao ar livre", onde suas esculturas e instalações poderiam ser exibidas e preservadas permanentemente, livres das limitações do sistema tradicional de arte. Judd não buscava apenas um espaço para criar; ele ansiava por um ambiente que refletisse seus ideais estéticos e que oferecesse liberdade para explorar suas ideias sem interferências.
Com o tempo, Marfa tornou-se um ponto de encontro para artistas e amantes da arte contemporânea. Apesar de seu visual retrô, quase congelada no tempo, a cidade carrega um espírito moderníssimo. Até o comércio, por mais simples que seja, ostenta uma autenticidade e sofisticação que saltam aos olhos. Cada loja, galeria e restaurante parece ter sua própria identidade visual cuidadosamente pensada, e é impossível não notar o toque de humor peculiar da cidade — perceptível logo nos horários de funcionamento dos estabelecimentos, que, diga-se de passagem, não seguem regra alguma. Ou melhor, seguem: as regras de Marfa.
Grande parte do comércio funciona apenas de quinta a domingo, e seus horários variam de maneira imprevisível. É comum encontrar portas fechadas durante a semana, ou até mesmo estabelecimentos que abrem por apenas algumas horas do dia. Tirei uma foto de uma placa de um estabelecimento onde se lia: "Opening Hours: we give up". A frase me arrancou uma risada, era uma das muitas provas do senso de humor sarcástico e irônico que eu veria em todos os dias subsequentes. A cidade, pequena e isolada no meio do deserto, tornou-se um ícone cultural, e essa fusão entre a localização remota e a efervescência artística deu origem a uma atmosfera única, onde o mundano e o sublime convivem lado a lado.
Marfa também brinca com sua própria fama. Muitos estabelecimentos possuem letreiros e produtos que zombam do hype em torno da cidade. Numa viela, a placa “City of Marfa, run-walk-jog at your own risk”, a loja mais charmosa de Marfa recebe os visitantes com um capacho que diz: "Here the client is always wrong." Esse humor autodepreciativo faz parte da alma do lugar, refletindo a maneira como Marfa lida com sua reputação de destino artístico descolado.
Um exemplo clássico disso é a famosa Prada Marfa, a tal loja que me fez descobrir a existência de Marfa no mundo e que, na verdade, não é uma loja, mas uma instalação de arte dos artistas Elmgreen e Dragset. A peça, que ironiza o consumismo ao posicionar uma "loja" de luxo no meio do deserto, longe de qualquer comprador, é uma crítica ao capitalismo e ao vazio de status, mas feita de forma visualmente impressionante e cômica.
Em grande parte do tempo, eu caminhava pelas ruas sem encontrar uma viva alma. Quando avistava alguém, parecia sempre ser a mesma dupla de amigas inglesas. Após esbarrar com elas várias vezes, acabei pedindo que tirassem uma foto minha, já que, viajando sozinha, eu não conseguia fazer algo melhor do que uma selfie apressada (Clichê N.3) que de nada serviria depois. Foi nesse momento que uma delas me perguntou: "Você está hospedada no El Cosmico, certo? Nós te vimos por lá."
Elas haviam acabado de se formar e estavam viajando pela costa dos EUA como presente de formatura. "Que maduras," pensei comigo mesma. Com 20 anos, eu fazia coisas bem menos relevantes. Falamos brevemente sobre nossos planos em Marfa, e foi então que elas mencionaram: "Queríamos muito ir até a Prada Marfa, mas estamos sem carro."
Ora, mas eu tinha um carro. Nos encontramos na recepção do hotel às 4 da tarde, e fomos juntas. Quando elas viram que a viagem seria num Mustang conversível, suas reações foram uma mistura de "Oh my God!" “what do you do?” “You have your own Business and you travel alone on your birthday?” “Oh my God you are so Iconic” (Clichê Nº 4). Elas se empolgaram tanto que, graças aos incessantes “you are so iconic” eu realmente me senti iconic. E foi bom, rs.
Perguntei o que queriam ouvir durante o trajeto, e aqui eu lhe apresento clichês Nº 5 e 6: Taylor Swift e Miley Cyrus, com “Flowers.” Não dava para ficar mais americanizado que isso. Mas mais clichê, sempre dá. Sigamos.
Fomos até a Prada Marfa e, na volta, o pôr do sol tingiu o céu de lilás e pêssego - aquele céu de Monet que tanto gosto - o vento nos cabelos, a sensação de liberdade (clichê n.7)… as jovens, ao meu lado, riam, faziam selfies tentando eternizar aquele momento mas também se deixavam levar por ele. Apreciavam a paisagem. Ao som de Mystery of Love eu também estava voando alto. Olhei para trás pelo retrovisor e pensei: "Uau, isso é real", enquanto uma delas duelava com o vento que bagunçava seus cabelos e eu ria silenciosamente, ciente de que aquele momento era tão surreal quanto a própria cidade que me levou até ali.
E sabe a sensação de estar vivendo um grande clichê? Pois é. Mas clichês não são clichês à toa — eles sobrevivem porque capturam, de maneira simples e verdadeira, os sentimentos e momentos que todos nós, em algum ponto, vivemos ou sonhamos viver. Às vezes, deixar-se levar pelas estrelas e pelo imprevisível é justamente o que torna possível viver dentro do nosso próprio filme, criando memórias que parecem irreais, mas que são exatamente o que nos fazem sentir vivos. E foi exatamente assim que me senti ao completar 35 anos: num filme clichê, com uma protagonista de olhos brilhantes, desconcertantemente radiante, tudo graças aos astros que entregaram a ela o que ela não havia pedido.