Memórias Além do Tempo

Memórias Além do Tempo

Se você me lê há algum tempo, pode ser que reconheça as palavras abaixo. Antes de darmos início às novas reflexões e dicas, acho importante deixar marcado aqui um pouco da minha história, de quem eu sou e de como cheguei até aqui, também uma gentileza com os récem-chegados por aqui. Allons y.

 

No sooner had the warm liquid mixed with the crumbs touched my palate than a shudder ran through me and I stopped, intent upon the extraordinary thing that was happening to me. An exquisite pleasure had invaded my senses, something isolated, detached, with no suggestion of its origin. And at once the vicissitudes of life had become indifferent to me, its disasters innocuous, its brevity illusory – this new sensation having had on me the effect which love has of filling me with a precious essence; or rather this essence was not in me it was me. ... When did it come? What did it mean? How could I seize and apprehend it? ... And suddenly the memory revealed itself. The taste was that of the little piece of madeleine which on Sunday mornings at Combray (because on those mornings I did not go out before mass), when I went to say good morning to her in her bedroom, my aunt Léonie used to give me, dipping it first in her own cup of tea or tisane. The sight of the little madeleine had recalled nothing to my mind before I tasted it. And all from my cup of tea.”

– Marcel Proust, In Search of Lost Time

 

Em sua obra Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust descreve detalhadamente o momento em que mergulha uma madeleine em chá de flor de tília, desencadeando um processo de lembranças que dá vida ao seu passado. A memória olfativa restaura um momento chave da infância do protagonista em Combray, cidade fictícia na França, despertando uma série de memórias visuais, auditivas e afetivas. 

Eu cresci ouvindo meu pai me falar que estava montando álbuns de foto para mim e para o meu irmão. Ele falava que um dia, eu guardaria esses álbuns na minha própria casa. Isso me parecia um futuro muito distante. Hoje, o maior tesouro que eu guardo são dezenas de álbuns antigos que contém fragmentos de quem eu sou. Meu pai, extremamente saudosista, ama contar histórias. Por isso, ele se dedicou a um projeto de rica construção de memórias afetivas que me permitiria melhor compreender meu desenvolvimento pessoal e emocional. Apesar de feitos pelo meu pai, os álbuns me deram autoria da minha própria história. 

Eu folheio as páginas e me deparo com imagens que despertam sentimentos, texturas, cheiros. Da mesma forma como Proust é transportado para seu passado em Combray através de uma simples madeleine, as imagens documentadas pelo meu pai me transportam para a infância em Búzios e Tamandaí.

"Eu cresci ouvindo meu pai me falar que estava montando álbuns de foto para mim e para o meu irmão. Ele falava que um dia, eu guardaria esses álbuns na minha própria casa. Isso me parecia um futuro muito distante. Hoje, o maior tesouro que eu guardo são dezenas álbuns antigos que contém fragmentos de quem eu sou."

Memórias Além do Tempo
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Estou sempre em contato direto com os álbuns. Através deles, eu entendo quem eu sou, meu jeito de ser, porque eu faço certas coisas de maneiras específicas, minha personalidade, meu olhar. Entendo também da onde vieram meus interesses, paixões, gostos e desgostos. 

Meu pai também escrevia curtas mensagens ao lado das fotos como títulos ou subtítulos que narram as alegrias e as dores de um pai observando o crescimento dos filhos. Escuto a voz dele nessa linha do tempo, carregada de afeto. 

As páginas dos álbuns transbordam com o amor e cuidado com os quais ele os construiu. As páginas hoje explodem com o carinho e a saudade que definem os momentos retratados. A minha convivência com meus pais e irmãos está toda documentada – pronta para ser acessada em momentos de nostalgia. 

Em sua obra, Proust também faz referência às pinturas impressionistas de sua época. De certa forma, os álbuns do meu pai também me lembram das mais incríveis obras que o impressionismo deixou como legado. O quadro Water Lilies de Claude Monet que hoje está no Art Institute of Chicago, por exemplo, serve como ponto de partida para essa metáfora. Quando olhamos para o quadro com uma certa distância, podemos observar as formas e paisagem que o artista ambiciona: são nenúfares flutuando num lago. É quase simples. 

Se nos aproximarmos do quadro, os traços que definem as formas se borram e transbordam uns sobre os outros. As pinceladas se confundem, cada uma com suas cores e texturas únicas. É como um ballet de diferentes tons de azul, verde e rosa. Cada pincelada contém seu próprio universo, sua própria imensidão – e sem a individualidade de cada uma, as Water Lilies não existiriam. De longe, vemos o desenho, e de perto, vemos os processos. A maravilhosa confusão de cores e traços criada por Monet tem como resultado uma paisagem poética.

Da mesma forma, a confusão de momentos, cheiros, sons, e imagens cuidadosamente documentadas pelo meu pai me permite dar sentido à minha história. De longe, vejo uma trajetória estruturada e coerente. De perto, entendo meus processos. 

A construção de memórias afetivas que meu pai fez para mim são o meu portal do tempo. É o maior legado que ele poderia ter deixado para mim. 

 

Com carinho,

Maria Helena.

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